Sob o Véu do Santo Ofício: A Inquisição Portuguesa e a Perseguição aos Crimes de Luxúria e Feitiçaria no Brasil Colonial

Documentos históricos revelam como práticas sexuais consideradas desviantes e rituais místicos populares tornaram-se alvo de tribunais eclesiásticos nos séculos XVII e XVIII

INQUISIÇÃOHISTÓRIASINQUISIÇÃO NO BRASIL

Ricardo de Moura Pereira

4/5/20254 min read

Entre 1591 e 1769, representantes do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição portuguesa cruzaram o Atlântico em diversas ocasiões para investigar, julgar e punir aqueles que consideravam hereges e pecadores nas terras brasileiras. Embora menos conhecida que sua contraparte espanhola, a Inquisição portuguesa deixou marcas profundas na formação da sociedade brasileira, especialmente em sua relação com a sexualidade e as práticas religiosas populares.

Os relatos dos processos inquisitoriais, preservados em arquivos históricos de Lisboa e Salvador, revelam um Brasil colonial muito diferente da imagem pudica frequentemente retratada em livros didáticos. Casos de "sodomia", feitiçaria, bigamia e "solicitação" (assédio sexual durante a confissão) compunham grande parte das denúncias investigadas pelos inquisidores.

"A Inquisição no Brasil tinha características próprias que refletiam as peculiaridades da colônia", explica a historiadora Lina Gorenstein, especialista no tema. "Enquanto na península ibérica a perseguição aos cristãos-novos era prioritária, aqui, os desvios morais e as práticas mágico-religiosas ganhavam destaque especial nos processos."

A perseguição aos "sodomitas"

Um dos focos principais dos inquisidores eram as práticas homoeróticas, chamadas à época de "pecado nefando" ou "sodomia". O historiador Luiz Mott, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, identificou mais de 400 pessoas denunciadas por esse "crime" durante as visitações do Santo Ofício ao Brasil.

"Salvador era conhecida na Europa como a 'Sodoma dos trópicos', tamanha a fama de liberalidade sexual que a cidade havia adquirido", comenta Mott. "Os documentos revelam uma diversidade de práticas e identidades sexuais surpreendentemente visíveis para uma sociedade teoricamente regida por rígidos códigos morais católicos."

O caso do músico Luiz Delgado e seu companheiro José Gonçalves é emblemático. Presos e processados em 1689, ambos mantinham um relacionamento estável há anos, sendo conhecidos na comunidade como "marido e mulher". Os testemunhos do processo descrevem com detalhes a intimidade do casal, incluindo declarações de amor e ciúmes.

Mulheres também não escapavam dessa perseguição. Em 1592, Felipa de Souza foi condenada por manter relações com outras mulheres. Seu processo, um dos mais bem documentados da Inquisição brasileira, terminou com a humilhação pública, açoites e degredo.

Magia, curandeirismo e pactos demoníacos

As práticas mágico-religiosas representavam outro alvo frequente. A confluência entre tradições europeias, indígenas e africanas criou um caldo cultural único no Brasil colonial, marcado por rituais de cura, adivinhação e proteção espiritual que desafiavam a ortodoxia católica.

"Havia uma economia espiritual paralela muito vibrante", esclarece a antropóloga Laura de Mello e Souza, autora de "O Diabo e a Terra de Santa Cruz". "Curandeiros, benzedeiras e adivinhos eram procurados por pessoas de todas as classes sociais, inclusive por membros do clero e autoridades coloniais."

Os processos revelam rituais fascinantes, como o caso de Maria Barbosa, presa em 1610 por praticar "feitiçarias amatórias". Ela confessou utilizar ossos de defunto, ervas específicas e orações heterodoxas para conquistar o amor de homens desejados ou para reconciliar casais separados.

Mais dramático foi o destino de Antônia Luzia, conhecida como "a feiticeira de Itapecuru", que em 1697 foi acusada de manter pacto com o demônio e causar doenças em seus desafetos. As testemunhas afirmavam que ela se transformava em figura monstruosa durante a noite.

A sexualidade do clero sob escrutínio

Ironicamente, membros do próprio clero católico figuravam entre os principais alvos da Inquisição por crimes de natureza sexual. O delito de "solicitação" – quando padres aproveitavam-se do confessionário para assediar sexualmente as fiéis – era especialmente monitorado.

"Era um problema tão comum que os inquisidores desenvolveram um questionário específico para identificar esses casos", conta o historiador Ronaldo Vainfas. "As perguntas inquiriam sobre toques inapropriados, propostas indecentes e até mesmo sobre o que ocorria depois, fora do espaço sagrado."

O padre Antônio Fagundes, da Bahia, foi denunciado por dezenas de mulheres em 1618. Os depoimentos descrevem como ele transformava o sacramento da confissão em oportunidade para avanços sexuais, utilizando-se da autoridade espiritual para intimidar suas vítimas.

Resistência e adaptação cultural

Apesar da rigidez do aparato inquisitorial, os documentos históricos também revelam estratégias sofisticadas de resistência. Muitos acusados manipulavam o sistema jurídico a seu favor, utilizando ambiguidades doutrinárias ou apelando para proteções de poderosos locais.

"Os réus não eram vítimas passivas", ressalta a historiadora Daniela Calainho. "Eles compreendiamm as regras do jogo e muitas vezes conseguiam negociar punições mais brandas através de confissões estratégicas ou denunciando terceiros."

A própria distância entre metrópole e colônia favorecia certa flexibilidade. As visitações inquisitoriais ocorriam com décadas de intervalo, permitindo que práticas proibidas florescesem nos períodos intermediários, apenas temporariamente interrompidas quando chegavam notícias de nova visitação.

Legado na formação cultural brasileira

O impacto desse período de vigilância moral e perseguição religiosa ainda ecoa na sociedade brasileira contemporânea, segundo especialistas. A duplicidade moral, a religiosidade sincrética e certa permissividade velada são frequentemente apontadas como heranças desse período.

"A experiência colonial com a Inquisição ajudou a formar uma religiosidade tipicamente brasileira, que combina rigor formal com flexibilidade prática", analisa o antropólogo Sérgio Ferretti. "Aprendemos a dizer 'sim' publicamente e fazer diferente na intimidade."

Os arquivos da Inquisição, ironicamente, preservaram descrições detalhadas de práticas que pretendiam eliminar. Graças a esses registros, historiadores podem hoje reconstruir aspectos da vida íntima e das crenças populares que de outra forma teriam se perdido no tempo.

"São documentos paradoxais", conclui Lina Gorenstein. "Produzidos para condenar e punir, acabaram se tornando nosso principal acesso à diversidade sexual e religiosa do Brasil colonial. Sem a obsessão dos inquisidores em registrar cada detalhe 'pecaminoso', muitas dessas histórias teriam desaparecido para sempre."

A última visitação do Santo Ofício ao Brasil ocorreu em 1763-1769, já em um contexto de declínio da instituição. Poucos anos depois, em 1821, a Inquisição portuguesa seria formalmente abolida. Sua herança, contudo, permanece viva nas complexas relações entre sexualidade, religiosidade e moralidade que caracterizam a sociedade brasileira até os dias atuais.